A capacitação do professor e a questão da língua escrita na pré-escola

 
Psicogênese da língua escrita é uma nova possibilidade de abordar a questão do ensino/aprendizagem da linguagem escrita, cujo conceito ainda não foi completamente assimilado por alguns profissionais do ensino.

Neste texto, a autora apresenta reflexões decorrentes de sua prática com a formação docente. Aqui você encontra uma interessante discussão sobre essa mudança de concepção no ensino/aprendizagem da linguagem escrita, assim como questões que facilitarão o trabalho de capacitação do professor de pré-escola.

Sabemos que as ações educacionais e administrativas de cada município têm características que demonstram a diversidade sociocultural de cada região.
Entretanto, ao realizarmos estes cursos, em diferentes cidades, constatamos alguns traços em comum que merecem uma reflexão.
São evidentes as repercussões das pesquisas e a ânsia de colocar em prática as mudanças sugeridas. Apesar da receptividade para o estudo do tema, geralmente nas primeiras horas de trabalho é possível notar uma grande ansiedade por parte dos educadores, como se o curso significasse quase uma oportunidade única de sanarem todas as dúvidas sobre o assunto, de obterem confirmações se o caminho pelo qual optaram está correto e, principalmente, a expectativa de que se apresentem sugestões práticas a serem aplicadas em sala de aula.
De modo geral são nítidas a perplexidade e a angústia dos professores. Aturdidos pela avalanche dos modismos, sentem-se obrigados a mudar, sem terem, porém, a mínima visão crítica do que vinham fazendo e as razões destas mudanças. Privados do acesso às fontes de informações e/ou a programas de capacitação permanentes, improvisam na prática mas se perguntam constantemente: por que, para onde e como mudar?. O professor que não está convencido da necessidade de mudar não entende o que mudar e aquele que já se convenceu (pelo menos no campo das idéias) não sabe como mudar.
Através da fala dos professores, ao caracterizarem o trabalho de alfabetização que realizam nas escolas, percebemos um discurso impregnado das influências teóricas, porém pouco elaborado e maduro, com slogans do tipo: "trabalhamos com o ambiente alfabetizador", "com a escrita espontânea e com a letra cursiva". Na tentativa de denominar "a nova prática" afirmam que desenvolvem o "método Emilia Ferreiro" (?)
ou o "método construtivista" e, na dificuldade de caracterizar o trabalho desenvolvido, muitas vezes acabam por alentar um rol de atividades e técnicas. Na maior parte das vezes parece ser mais fácil dizer o que não fazem, como: "não trabalhamos a prontidão, não usamos o mimeógrafo, não adotamos cartilhas...". Rejeitam, assim, um modelo que não querem ou não podem mais trabalhar.
Quando perguntamos o significado destas afirmações percebemos a fragilidade e inconsistência das colocações. É importante analisarmos o que está por detrás da fala dos educadores. A impressão é que falam mais de um desejo do que de um fato recorrente na realidade; logo, se evidencia a ausência de trabalho que favoreça o aprendizado da língua escrita por parte da criança e, o que é mais grave, a falta de clareza do professor do papel educativo da Pré-escola.
Apesar dos vários aspectos envolvidos na análise dos problemas, atribuímos grande parte destas dificuldades à inexistência de programas de formação em serviço destes educadores. Normalmente os quadros técnicos (coordenadores pedagógicos, diretores, etc.) existentes nos municípios são bastante deficitários e burocratizados, mal conseguindo atender a problemas fundamentais como: a reduzida oferta de vagas diante da demanda crescente, as diferentes realidades das escolas rurais e urbanas (que normalmente apresentam práticas discriminatórias), a ausência de projeto pedagógico para as escolas, a histórica ruptura da Pré-escola e 1°- Grau etc. Soma-se a isto o fato de, atualmente, circularem com sucesso crenças como a de que o professor só pode usar a letra de forma, não pode intervir no processo espontâneo da criança e outras afirmações similares. Todas elas tomadas fora do contexto onde foram formuladas, normalmente em cursos-relâmpagos que se proliferam de maneira assustadora!
Na tentativa de esboçar um quadro mais genérico corremos o risco de chegar a uma caricatura da realidade encontrada nos municípios. É claro que encontramos municípios que apresentam trabalhos de qualidade, com bases sólidas, fruto quase sempre de um longo processo de construção coletiva (dos professores, coordenadores e diretores).
Acreditamos que, apesar das incongruências e dificuldades atuais, o momento é oportuno para realizarmos uma profunda avaliação da questão da língua escrita no contexto pré-escolar; suas possibilidades e limites. E isto só poderá ser feito se considerarmos as necessidades de formação do professor, o agente primordial para alcançarmos qualquer mudança.
Muito se tem falado do processo de conhecimento infantil mas pouco se sabe sobre o processo de aquisição de conhecimentos conceituais (que se fundamentam na teoria mas que também justificam a prática) por parte do professor.
Está comprovado que os avanços e as respostas das crianças (a partir de práticas alternativas) ensinam o professor. Sem dúvida, a criança pode ser um elemento importante para a capacitação do educador, mas será isto o suficiente?
O problema da capacitação do professor é bastante complexo (o que confirma a tese de que o educador é uma síntese de múltiplas determinações), pois o que ele envolve não são apenas as instâncias formais (e prévias) de formação do profissional (normalmente bastante deficitárias), mas também as próprias oportunidades de reflexões de sua prática e, principalmente, a experiência (que quase sempre serve como modelo) que tiveram como alunos, quando aprenderam a ler e a escrever. No trabalho com a linguagem escrita está em jogo também a forma que o professor usa a língua, normalmente de maneira descontextualizada, pouco prazerosa e bastante tarefeira (notamos uma enorme dificuldade dos professores quanto à interpretação e produção de textos).
Mesmo não tendo a pretensão ingênua de que a educação em serviço recupere todas as deficiências da formação prévia do educador, acreditamos ser possível (e desejável) formar um professor capaz de refletir, discutir e buscar soluções para seus problemas cotidianos, apropriando-se de sua prática desde o planejamento, execução até a avaliação. Para isto é necessário que os programas de capacitação levem em
consideração suas hipóteses, suas tentativas e erros; que propiciem a interação entre os professores e os demais colegas, entre professores mais experientes e iniciantes (ver conceito de zona de desenvolvimento proximal de VYGOTSKY); e, principalmente, "façam a ponte" entre os estudos teóricos, possibilitando sua análise e aplicação na realidade prática. Intervindo no processo de aprendizado do professor consegue-se revelar a teoria subjacente à sua prática pedagógica e, finalmente, levá-lo à compreensão das diferentes dimensões de alfabetização: sociológica, lingüística, pedagógica e psicológica.
Temos a consciência de que isto não se consegue somente num curso de poucas horas (apesar de sua inegável contribuição) e sim por meio de um trabalho constante, orientado por profissionais de Educação, que vivenciem a realidade pedagógica cotidiana mas que tenham a função de levar o professor a refletir e a ampliar seus conhecimentos.
Temos, portanto, de buscar alternativas para a educação do educador (tanto de Pré-escola quanto do 1 °- Grau) para podermos formar verdadeiros leitores e escritores que aprendam a usar a língua de forma crítica, criativa e inteligente.
Esta busca de alternativas é necessária e urgente porque aprender a ler e a escrever numa sociedade letrada significa apropriar-se de um valioso instrumento de informação e poder que permite a participação na coletividade e o exercício pleno da cidadania.
Como disse VYGOTSKY, o caminho para a criança apropriar-se deste instrumento é longo e complexo. Acreditamos que também para o educador a compreensão deste processo seja complexa.

Bibliografia
FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez/Autores Associados,
1985.
_____. (org). Os filhos do analfabetismo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
FERREIRO, E., TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1985.
KRAMER, S., ABRAMOVAY, M. Alfabetização na pré-escola: exigência ou necessidade.
Cadernos de Pesquisa, Fundação Carlos Chagas: São Paulo, (52)102-107, fev.,
1985.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.




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