Alfabetização deve ser feita sem pressa


Processo começa no nascimento do bebê, a partir do contato com diferentes linguagens.



De olho em um livro com letras fixadas por uma espiral, Lucca, Rafael e Paula escolhem os sinais gráficos que representam seus nomes. Eles pensam, folheiam as páginas e gastam segundos para formar uma palavra completa. Depois, estimulados pelas pedagogas da escola de Educação Infantil, participam de um jogo da forca, olham imagens e escrevem o nome de cada um dos bichos. As atividades fazem parte de exercícios de alfabetização, mas o curioso é que, aos cinco anos, eles já sabem muito e recém começaram o ano na pré-escola.




Desde a mudança curricular, que aumentou o número de anos (de oito para nove) do Ensino Fundamental e antecipou para os seis anos a entrada na 1ª série, histórias semelhantes são cada vez mais comuns nas salas de aulas dos pequenos. Mas será que vale a pena ensiná-los a ler e escrever antes do ingresso no Ensino Fundamental?




Na verdade, não há comprovação científica de que a alfabetização precoce deixe a criança mais inteligente que os colegas. O que pode existir é um interesse maior delas pelo mundo das letras quando têm contato desde cedo com recursos ligados às diferentes formas de expressão.


– Os pais das crianças de zero a seis anos associam escola à alfabetização. Acham que elas vão à escola apenas para ler e escrever, por isso é colocado um peso grande na leitura e escrita com palavras. Isso é um equívoco – diz o pedagogo Gabriel de Andrade Junqueira Filho, doutor em Educação e professor da Faculdade de Educação da UFRGS.




Para ele, alfabetizar é um processo que começa desde o nascimento do bebê e se dá a partir da interação com múltiplas e diferentes linguagens, como, por exemplo, brincar, cantar, desenhar, ouvir e criar histórias. Por meio delas, a criança vai descobrindo o mundo, inclusive o das palavras, interessando-se por elas e compreendendo a importância de se alfabetizar.

Para evitar fazer do processo de aprendizagem uma lição desagradável, é preciso atenção e sensibilidade dos pais e da escola, pois cada criança tem uma relação específica com a escrita, que precisa ser conhecida, explorada e encaminhada. Portanto, senhores pais, nada de pressa e atropelos com as crianças!



É preciso calma e saber sempre que os pequenos, assim como os adultos, organizam e investem suas energias sempre que algo lhes faz sentido. Com o aprendizado da leitura e da escrita isso funciona da mesma forma.




Passo a passo





Por mais que os pais queiram incentivar os filhos em idade escolar a escrever, cada criança tem um tempo, que depende das etapas do desenvolvimento motor e psicológico e do convencimento de cada um sobre o sentido desse aprendizado. Assim, eles se mostrarão preparados quando tiverem interesse e curiosidade pelo alfabeto, por histórias e por tudo aquilo que se representa de forma escrita. Para chegar nesta fase, os pequenos precisam e podem ser estimulados desde o berçário.




Questão de hábito



Ler, escrever recados, folhear livros e contar histórias para os filhos são os primeiros exemplos e incentivos que pais e mães podem dar às crianças se quiserem vê-las interessadas em conhecer o mundo das letras. Durante o processo de aprendizagem, os pequenos costumam imitar os atos dos pais. Portanto, se a família tem o costume de estudar, ler e escrever, provavelmente os filhos desejarão imitá-la.




Cada um com seu ritmo



Para caminhar é preciso engatinhar, agarrar-se em mesas e sofás, cair, levar tombos. Na fala, a construção também é feita devagarinho, palavra por palavra. Antecipar ou apressar essa aprendizagem é o mesmo que não suportar e não respeitar o ritmo de cada um, o que interefe de forma negativa na relação da criança com aquilo que ela está aprendendo.Assim como a retirada da fralda, desenhar é uma grande aprendizagem. É nos rabiscos, na exploração do espaço do papel, na manifestação da criatividade em diferentes situações e nas descobertas da vida cotidiana que a criança vai absorvendo e compreendendo o ambiente letrado. Mas para isso, é preciso ter calma, pois cada um tem seu ritmo, seu interesse e sua maturidade.




Sem insistir





A família precisa ter cuidado para não insistir na alfabetização caso a criança mostre desinteresse antes de ingressar no Ensino Fundamental. O que pode ser feito desde o nascimento é estimular o bebê por meio da exploração de livros próprios para eles (de pano, de borracha, de papel mais resistente, com ilustrações). Ao lidar com isso, eles já estarão ingressando no universo da leitura e da escrita. Mostrar o alfabeto não está proibido, mas não é prioridade.Os pais precisam se certificar se, no Ensino Fundamental, a instituição não sobrecarrega as crianças com a alfabetização. O ideal é propor também atividades lúdicas, para que se desenvolvam nas linguagens não-verbais. Além disso, é preciso acompanhar o processo de alfabetização, mostrando interesse, ouvindo as dúvidas e dificuldades, valorizando as conquistas e a ajudando a encontrar o sentido da escrita em sua vida.




Caligrafia



Pouco depois de as crianças começarem a esboçar as primeiras palavras no papel, muitos pais que não gostam do formato das letras delas acham importante adotar um caderno de caligrafia. Em parte das escolas, não é diferente.Vistos por alguns especialistas como ferramentas pouco instigantes, os cadernos devem ser utilizados apenas em situações específicas e nunca como punição, correção ou motivo de zombaria. Mais importante que a letra bonita, a criança precisa compreender como funciona a lógica da escrita e a importância de ser alfabetizada. Caso contrário, os exercícios de caligrafia poderão deixá-la rotulada, cansada e desestimulada.Para melhorar a habilidade motora fina e a consequente qualidade da letra, os alunos devem ser incentivados por meio de atividades como recortar, colar, brincar com massinhas, entre outras.




Empurrãozinho da família



Dedicação para encontrar meios de estimulação precoce para uma filha com problemas neurológicos trouxe para a médica Ádria Simões Pires Giacomet a instigadora ideia de fazer um material lúdico para ensinar o alfabeto. Na época, há mais de 20 anos, ela usava lápis, papel e revistinhas infantis para fazer com que a criançada se interessasse pelas letras.




– Ao levá-los para escola na primeira série, percebia a ansiedade de mães, cujos filhos não sabiam ler. Pensava por que não fazer um teatro brincando com as letras, assim seria mais interessante e fácil a memorização – lembra.




Com o tempo e os recursos da tecnologia, a médica e mãe inovou. Lançou o ABC Bebelê, um livro colorido acompanhado por um desenho animado musical. Pelas canções, o pequeno ouve o som que a letra faz e assiste ao animal ou à figura que inicia com aquela letra, tudo para facilitar a associação.




O material conta com ilustrações de animais, imagens coloridas, cantigas de roda. Quando os pais participam, incentivando as canções e a imitação dos movimentos ritmados das figuras, estão estimulando a musicalidade, a motricidade e melhoram o vínculo afetivo da família.




– Pais e filhos com bom vínculo afetivo são o alicerce para saúde emocional, que também facilita o desempenho escolar – diz Ádria.




Para a médica, a criança que já sabe ler e tem interesse na leitura tende a ficar mais concentrada em atividades específicas do que aquela que está com dificuldade para aprender.




– Por que exigir da criança memorizar em poucos meses os 26 símbolos das letras maiúsculas, mais os 16 símbolos das minúsculas que são diferentes e mais os símbolos das letras manuscritas, total de mais de 50 símbolos? É muita informação para pouco tempo de exposição.




Nesse processo que exige tempo, os pais não devem exigir que elas conheçam todos símbolos do alfabeto, seus sons e suas combinações, pois entre seis e sete anos a criança também estará aprendendo a escrever, o que precisa de muito treino para desenvolver a habilidade. E a escola é o lugar ideal para esse exercício.– A criança que já sabe ler pode ser uma referência para as outras e um grande auxílio no desenvolvimento do grupo. É bom aprender com os amigos – afirma.


Como ajudar



– Se as crianças nunca virem seus pais lendo (jornal, revista, placas de ruas, etc) ou escrevendo (recados, cheques, listas de supermercado, etc), dificilmente perceberão o sentido e a relevância de se alfabetizarem. Os pais são exemplos sempre, e o uso que fazem da leitura e da escrita revelam o quanto é importante se interessar pelas letras.


– Na hora de comprar presentes para os pequenos, não se esqueça dos livros para crianças. Instigue-as a descobrir o conteúdo da publicação e leia para ela antes de dormir ou em momentos de folga. Isso aproxima muito pais e filhos, além de despertar o prazer pela leitura e desenvolver a imaginação das crianças.



– Mesmo sem dinheiro é possível frequentar as livrarias com os pequenos para conhecer as obras ou participar de projetos culturais gratuitos. Outra opção é frequentar bibliotecas públicas e da escola.– Marque pertences como toalhas, berço e porta do quarto com o nome da criança ou do conteúdo de gavetas ou caixas de brinquedos. Use sempre o mesmo tipo de letra (maiúsculas) e com tamanho grande para que ela fixe bem o formato.


– Ao ler as histórias infantis dos livros, mostre a seus filhos as gravuras, o texto, o nome do autor. Dessa maneira, eles vão aprendendo a diferença entre o desenho e a escrita, ficam sabendo que tem uma pessoa que escreve a história e outra que a ilustra. Você pode, inclusive, convidá-los a inventar uma história e a fazerem um livro com o material que tiverem em casa (papéis, caneta hidrocor, giz de cera). As crianças inventam a história e a ilustram, e os pais escrevem.



– Ofereça para os bebês livros de pano ou de plástico ou borracha (para o banho), para que eles comecem a ter contato com os livros.




FONTES: Ádria Simões Pires Giacomet, médica , Adriana Verardi, pedagoga, Gabriel de Andrade Junqueira Filho, pedagogo, Kenia Vellozo, pedagoga e Sandra Pio da Silva, pedagoga


Artigo publicado na Zero Hora, (jornal de Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil) no dia 16/03/2009.



 

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